quarta-feira, maio 24, 2006

BATISMO DE FOGO NA ROCINHA


Poucos anos atrás tinham a idade das crianças que almoçavam hoje, no refeitório da escola pública na Rocinha, quando começou a fuzilaria.
Aprendaram lá, nos bancos escolares, as primeiras lições de como garantir sua integridade ao eclodir um tiroteio na comunidade [eram já da época em que cidadãos politicamente corretos, moradores no asfalto, deram às favelas esse apelido tão simpático]. De como rastejar, abrigar-se, orientar-se quanto à direção de onde partiam os tiros, identificar a autoria dos disparos - se dos "comunitários" ou da polícia -, rezar em silêncio, indicar às professoras quais os melhores abrigos dentro da escola e que caminhos seguir para alcançá-los, sem o risco de seram alcançados pelas balas sempre traiçoeiras.
Tinham a idade das crianças que almoçavam hoje no refeitório da escola os responsáveis pelo tiroteio de hoje pela manhã na Rocinha.
Alguns de seus colegas de turma, bem sucedidos na vida, se transformaram em auxiliares de serviços gerais em uma e outra firma de maior porte; seguir carreira depois de prestar o serviço militar foi o caminho para uns poucos, que partiram sobretudo para quartéis fora do Rio; moto-taxistas foi o caminho para a maior parte dos que tiveram a "oportunidade" de não abandonar suas origens e que hoje, entre outras atribuições fazem parte do serviço de informações - informal - que mantém, sob certos aspectos, a segurança [dentro dos limites compatíveis com a situação que por lá se vive] de todas as partes envolvidas neste drama sem par, tão distante da realidade da chamada "elite branca", definição infeliz de político recentemente empossado no cargo mais importante de um estado; não se é capaz de quantificar quantos optaram pelos serviços de segurança pública, nas Polícia Civil ou Miltar: em sua totalidade, ou quase, deixaram ou foram obrigados a deixar suas raízes no morro da Zona Sul, suas praias do Leblon e São Conrado, seus amigos de infância e tudo o mais que fazia sua alegria de viver.
Professoras mais antigas da escola da Rocinha que estava na hora do almoço quando começou a troca de balas são chamadas de tias por muitos dos atiradores locais.
Tratam-nas com carinho, garantem sua segurança se alguém, por acaso, faltar ao respeito com alguma delas, levam-nas na garupa de seus moto-táxis sem cobrar o transporte, alertam-nas para não deixarem a escola em tal horário quando se prevê possível confronto com o "inimigo", recomendam a seus alunos atuais que as respeitem.
São todos bons rapazes, conhecidos das moradoras mais antigas do morro, afilhados de muitas delas que foram suas parteiras, os responsáveis pelo tiroteio de hoje na Rocinha, detonado quando as crianças almoçavam na escola.
Minha amiga professora teve lá, hoje, seu batismo de fogo: aprendeu com as crianças os atalhos a seguir dentro da escola para ficar abrigada em local seguro; como reconhecer o espoucar dos rojões que alertam os "soldados" da área de que a polícia estava se aproximando; como saber a origem dos tiros que zuniam em seus ouvidos como se estivessem sendo dados a seu lado; qual o calibre provável de cada arma que era disparada; como rastejar pelo cimento molhado da quadra de esportes para chegar à cobertura do segundo andar, pousada segura durante os confrontos com arma de fogo na comunidade; como saber que a batalha terminou pelo contato telefônico com o moto-taxista que observa, lá do asfalto, o movimento na parte de cima do morro; como as mães dos alunos, arriscando suas vidas, chegam à escola, pela mata ainda existente no local, para ficar em companhia de seus filhos e acalmar as professoras.
Minha amiga só deixou a escola no carro de outra professora depois de ter a garantia dos moradores locais de que não mais havia motivos para procupação; podia descer sim, mas com os vidros do carro abaixados: se levantados seria capaz de levantar suspeitas da polícia e ninguém sabe o que poderia acontecer...
Apesar de tudo por que passou na hora do almoço das crianças na escola da Rocinha minha amiga não acredita que qualquer de seus alunos de hoje siga as trilhas - de curta distância e pouca duração - dos ex-alunos de tão pouco tempo atrás.

Engana-se, a meu ver, minha amiga professora, minha filha mais velha. Desencantado, vejo - em curto espaço de tempo - que já terão partido os "soldados" de hoje, com certeza. Alguém precisa substituí-los.

(Foto: PM do Batalhão do Leblon, ferido no pescoço, perde a direção da viatura e bate em poste ao deixar a área de conflito / Crédito: Fabio Motta - AE)