
Aposentado depois de quarenta e poucos anos de trabalho, Inocêncio, chamemo-lo assim, - portador de dois cursos de nível superior [evitamos dizer suas formações para não desmerecê-las e prejudicar os jovens que esperam delas viver nesses dias incertos que passa o país; imagine-as quem quiser que tome conhecimento de seu currículo; mais não digo], com relevantes trabalhos na área social, ex-assessor de dois ministros, professor em diversos cursos de formação e extensão universitária [Engenharia Econômica, por exemplo], responsável por trabalhos na área industrial, coordenador de projetos nas áreas de educação, esportes e saúde, colaborador na elaboração de livros em uso até hoje em diversas faculdades brasileiras e outros tantos serviços prestados na área de planejamento urbano et cetera - faz jus, hoje em dia, a "benefício" do INSS não pouco menor que os rendimentos do porteiro de seu prédio e da mensalista que presta serviços de limpeza, uma vez por semana, à sua vizinha gorda, pensionista do Ministério do Trabalho.
Da vida, a reclamar, apenas a doença, que o alcançou quando imaginava poder frequentar os botecos de que mais gostava e se viu impedido pela doença. Mas "bola pra frente", já dizia seu amigo Jorge Estrella que o aguarda lá do outro lado. Voltou-se para os livros, muitos deixados pelo pai jornalista, outros adquiridos na época em que comprá-los não chegava a ser luxo a que somente uns poucos têm acesso.
Deixemos de lado, porém, as lembranças tristes. Dizia o sambista antigo que "tristezas não pagam dívidas"; e não vale a pena ficar a evocá-las quando no fim do mês teremos nossos remedinhos [dezoito por dia], que nos levam, hoje, a quase totalidade do tal do benefício, com 80% de desconto, pensava ele.
Início do mês de agosto e nosso amigo, com sua bengala, motivo de gozo para os amigos íntimos, esforço hercúleo, parte em direção à tal da "farmácia popular". Alegre, pensando já em economizar para comprar um livro novo com o que viria a economizar na compra dos remédios, confirma seu objetivo e parte para o fundo da drogaria, onde o anúncio dizia se encontrar o que, com toda a certeza, seria seu alívio financeiro dali para a frente.
Não, o rapazinho que o atendeu - Gilberto, conforme informava o crachá que levava ao peito - não sabia como funcionava a farmácia popular. Mas que ele esperasse um pouquinho só que iria ser atendido.
E foi, pela Arcelina - novamente o auxiliou o crachá que a mulatinha magrela, cabelo cor de caju desbotado, levava ao peito magro -, que o atendeu com um sorriso deste tamanhão nos lábios.
Inocêncio foi logo dizendo, nem deixou que Arcelina falasse, que era diabético, tomava tantos remédios por dia, olha aqui a receita, os remédios são esses, esses aqui são genéricos, patati-patatá e coisa e loisa.
Arcelina, sempre sorrindo, correu os olhos pela prateleira e numa fração de segundo voltou com a caixa de um remédio genérico: "Para diabetes só tem esse." Era, por acaso, o mais barato dos medicamentos que Inocêncio era obrigado a comprar.
Meu amigo insistiu, mostrando uma caixinha branca com letras azuis: "Mas este aqui, todo mundo que tem diabetes usa; não tem?"
Insistiu mais uma ou duas vezes. Arcelina mantinha o sorriso gentil; Gilberto já se afastara para a frente da farmácia, de onde olhava a cena com olhar enviesado. Duas senhoras com ar e roupas de granfinas, olhar de Capitu, cochichavam alguma coisa que já irritavam Inocêncio.
Arcelina insistia que só havia aquele remédio para diabetes; entendia que os diabéticos usavam muitos outros; mas nada podia fazer. Sempre com o sorriso nos lábios.
Tres gerações, pelo menos, da famíla do ministro da Saúde, foram xingadas de cabo a rabo por Inocêncio; quatro da família do presidente, a ítalo-brasileira Primeira Dama inclusa.
Afastaram-se, discretamente, as senhoras com ar granfino; Gilberto ficou na porta da farmácia e Arcelina manteve o sorriso.
"É, você é mesmo uma hiena", disse Inocêncio para a balconista, carregando sua bengala com a mão esquerda. Na direita as receitas dos 18 remédios que era obrigado, por dia, a tomar.
Arcelina ficou com seu sorriso no balcão. Inocêncio sem os seus remédios.
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Autor da charge: Sponholz www.sponhlz.arq.br