terça-feira, novembro 28, 2006

BARBOSA, O PRIMEIRO COMUNISTA DE MINHAS RELAÇÕES

Barbosa freqüentou minha casa desde o primeiro momento em que me identifiquei como gente.
É daqueles amigos que tiram você da cama nas manhãs de domingo - pouco depois das sete e antes das oito - para ir [no carro do amigo, o dele está sempre no mecânico] jogar uma pelada naquele campinho de subúrbio que ninguém conhece a não ser os moradores do local; que abrem a geladeira sem qualquer cerimônia e se servem da geléia importada descoberta num cantinho escondido daquela loja especializada em importados, que existe até hoje na rua da Assembléia, prontinha para ser degustada no dia mesmo de sua descoberta por Barbosa, que com ela acaba em menos de dez minutos [você não teve tempo nem de chegar à mesa] e que depois, sem a menor cerimônia, comenta:
"Geleiazinha boa essa, hein, rapaz; você viu a data de validade? Achei que ela estava meio azedinha, mas mesmo assim estava gostosa; onde é que você comprou?"
Barbosa é daqueles amigos que levam seu relógio - problema: atraso de cinco minutos por semana - para o reparo ["tenho um amigo porreta nesse negócio de consertar relógio"] e você nunca mais saberá de seu destino.
É o amigo faz tudo, o amigo que sabe tudo, que tudo resolve e que guarda por você uma dedicação como nenhum outro amigo jamais teve.

Barbosa foi o primeiro comunista que conheci. Dizia-o baixinho, cabeça encostada no pescoço do interlocutor, segurando seu braço e olhando para os lados como se a verificar a presença de alguém que pudesse descobrir sua opção política e prejudicar sua vida junto às autoridades [eram acusados os comunistas, à época, de comer criancinhas].

Foi ele quem me fez achar todos os comunas inteligentes. Era de vê-lo falando sempre que a seu redor estivessem mais de três pessoas. Falava bonito, usava umas palavras que, tenho certeza, só os mais letrados tinham capacidade para entender. Citava nomes de pessoas que só muitos anos mais tarde vim a saber quem eram. Repetia muito em seus discursos [discursos, sim, pois toda vez que abria a boca falava como se fosse candidato a presidente] sobre a necessidade de uma tal de "reforma agrária"; encantava-me sua companhia sempre que a seu redor houvesse alguém para ouvir o que dizia.

Surpreendia-me, contudo, a diferença no comportamento de Barbosa ao se dirigir a meu pai ou, simplesmente, quando se encontrava em minha casa: não havia aquele brilho ao falar com as pessoas, não era o candidato a alguma coisa que vivia em meu subconsciente; mais ouvia que falava.

Cresci me afastando de Barbosa cada vez mais muito embora meu primeiro comuna continuasse a manter a mesma amizade com meu pai e a mesma freqüência de visitas à nossa casa. Foram, primeiro, a nos afastar, meus estudos; depois o namoro fora do Rio, noivado, casamento, mudança para a Bahia, filhos... e lá se foram os encontros, as feijoadas de Dona Duduca [minha mãe] e a descoberta de quem era o verdadeiro Barbosa.

Do interior do que chamávamos Estado do Rio, pais pobres, trabalhou mais na lavoura que sentou-se nos bancos escolares. Não chegou a completar o antigo curso primário.
Mas Barbosa sempre foi uma pessoa inteligente. Sabia ouvir e pouco ler - cansava-o a leitura de mais de três parágrafos seguidos - e tinha competência incomum para formar frases a partir das palavras que ouvia, habilidade que desenvolveu desde o primeiro dia em que algum amigo, por um ato de molecagem, o levou a uma reunião do Partidão, que adorou. Daí o brilho de nosso Barbosa ao falar; daí seu desempenho junto aos menos esclarecidos, usado por seus companheiros comunas - esses, sim, esclarecidos, que o mantiveram em seus quadros à espera de uma oportunidade para lançá-lo, servindo mais ao partido que ao povo, candidato a algum mandato qualquer.

Dia desses vi seu nome citado em uma CPI dessas, sabe?, que são divulgadas todos os dias nos jornais. Não sei se o deputado Barbosa, sabe?, tem culpa no cartório ou não. Estou certo, apenas, de uma coisa: não consegue dizer, até hoje, sabe?, a palavra "coalizão" sem, normalmente, incorrer em erro. Não sei qual o problema fonoaudiológico, sabe?, que o leva a dizer, quase sempre, "colizão".

Acredito que meu amigo [não o tenho visto ultimamente] vença, sabe?, a barreira da língua quase presa; já venceu, sabe?, tantas outras barreiras...
"Problema", por exemplo, sabe? já deixou de ser "pobrema" faz algum tempo... Sabe?

Desculpe, amável leitora, a insistência na tentativa de fazer com que você concorde com o que digo abusando do sabe? nos dois últimos parágrafos.
Foi vício de linguagem que aprendi com o deputado Barbosa quando tentava convencer seus interlocutores de que estava cheio de razão.