Seu título: "TERÁ O GOVERNO COMPETÊNCIA PARA RESOLVER?".
Para os que estão cansados, como eu, das tolices que grassam na capital, talvez sirva como bálsamo...
X X X
Não havia frequentador daquela mesa no restaurante do final do Leblon que Carlinhos não conhecesse. Por nome, sobrenome, endereço e local em que votava. De um deles, o mais velho - o nome não cito por falta de autorização - tinha até cópias da chave do prédio em que morava e do apartamento em que vivia solitário.
Também, há mais de vinte anos trabalhando na casa, testemunha silenciosa de amizades que nasceram e se desfizeram naquelas mesas da varanda, não havia, de quinqüagenário pra cima, quem não lhe houvesse desfiado uma confidência sequer, quem não lhe tivesse deixado um recado para transmitir - com discrição nunca vista - àquela visitante desconhecida, velha ou nova de idade, ou à senhora conhecida cujo casamento estava em baixa ou já desmoronara de vez.
Ai de quem tocasse em seu nome com uma palavra minimamente de não aprovação. Dos dez, doze coroas frequentadores da mesa [de sábados, domingos, feriados e dias santos], treze se levantavam em sua defesa e o cidadão de má palavra, na melhor das hipóteses, enfiava, no ato - como dizia vó Aurora - a viola no saco, pagava a conta e não encontrava mais tempo para voltar ao bem-bom do dizer bobagens e do salvar a pátria amada na mesa reservada, sempre irrepreensivelmente arrumada por Carlinhos, desde as oito da manhã.
Sabia-se dele que morava no Estado do Rio [como se dizia antes da mudança da capital pra Brasília] e tinha um filho menino. De sua mulher, mãe do garoto, pouco se sabia e comentava. A tese mais forte era a de abandonara Carlinhos pouco depois de nascer-lhe o filho, deixando-o a cumprir, de uma só vez, as funções de mãe e pai. Levou uma vez o menino, que me lembre, para o trabalho. Foi na véspera de um Natal em que chovia muito. Fez-se uma vaquinha entre o pessoal da mesa e o Adalberto, o Beto, médico endocrinologista, o mais novo entre nós, foi ao shopping na outra quadra e voltou com um carrinho vermelho de corda [ainda é assim que se chama?]. Poucas vezes vi uma criança tão feliz com um brinquedo num dia 24 de dezembro.
X X X
Passaram-se os anos. Foram-se os companheiros dos noventa e quebrados, dos oitenta, setenta e sessenta. Outros entraram em seus lugares. Embranqueceram os cabelos dos quinqüagenários dos primeiros anos. Começamos a testemunhar, nos outros, os enfartes, os AVC's, o diabetes traiçoeiro. Fomos nós, depois, as vítimas. Chegaram os tratamentos prolongados, as dietas, os reclamos das famílias. Esvaziou-se a mesa reservada. Deixaram-se de se ver, aos poucos, os amigos.
Carlinhos, por uma questão genética qualquer, manteve os cabelos pretos; somente seus bigodes [esqueci de dizer: usava vastos bigodes, daqueles que nos acostumamos a ver nas antigas caricaturas dos lusitanos donos de botequim] ficaram brancos. De doenças nunca imaginei que pudesse ter sido vítima de qualquer das que nós, companheiros de mesa, sofremos.
De todos, apenas Carlinhos continua dando plantão nas mesas da varanda.
X X X
Estive no restaurante ontem à tarde. Ocupei a mesma mesa do canto esquerdo de quem entra na varanda, comandada pelo já velho garçon. Carlinhos não demorou, e sem que eu pedisse, trouxe uma taça do vinho [única bebida que o médico me autorizou tomar] de minha preferência, com a recomendação: "Só tem direito a mais uma, doutor. Sua senhora esteve aqui e me avisou. Estou sabendo, hein?"
A notícia do jornal de Brasília que Carlinhos me trouxe, assim que comecei a degustar meu vinho, dizia:
"Cirurgia para mudança de sexo passa a fazer parte do SUS
A cirurgia para mudança de sexo fará parte da lista de procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS). A Portaria n.º 1.707 do Ministério da Saúde, publicada na edição desta terça-feira (19) do Diário Oficial da União, prevê a realização do processo transexualizador nos hospitais públicos dos estados.
De acordo com a norma, deve-se “levar em consideração a integralidade da atenção, não restringindo nem centralizando a meta terapêutica no procedimento cirúrgico de transgenitalização, promovendo um atendimento livre de discriminação”. Cabe à Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, segundo o texto, adotar as providências necessárias à plena estruturação e implantação do processo transexualizador no SUS, definindo os critérios mínimos para o funcionamento, o monitoramento e a avaliação dos serviços."
X X X
"O senhor sabe por onde anda o doutor Adalberto?", perguntou-me Carlinhos ao perceber que eu havido terminado a leitura da notícia. Não sei do Beto faz mais de vinte anos; parece que foi para a Espanha, Portugal ou qualquer outro lugar lá pelas Europas.
Perguntei, rindo, para meu amigo garçon se estava precisando do SUS para fazer aquele tipo de cirurgia.
"Não, doutor. É pro meu menino. Desde garotinho me dá um trabalhão, o senhor não pode imaginar. Quem sabe se com esse serviço gratuito a gente dá um jeito?"
X X X
Voltei pra casa preferindo que Carlinhos não tivesse tomado conhecimento da notícia do jornal e que eu não tivesse sabido deste particular da vida de seu menino.

