Amigo
Liberou-me o médico, ontem à noite, para voltar ao trabalho. Com as recomendações de sempre: manter a bendita dieta; observar as caminhadas diárias de, no mínimo, trinta minutos; continuar com a medicação que ultimamente esqueço, com regularidade cada vez maior, de tomar; e, sobretudo, não me emocionar e manter-me equilibrado, o que vale dizer: afastar da lembrança as tristezas de todo dia, as ausências e as perdas irrecuperáveis.
Difícil, amigo, esta última recomendação. Sobretudo quando o vemos partir sem a possibilidade de, no mímino, um "até logo, irmão, a gente se vê daqui a pouco", sem um abraço, um olhar ou, ao menos, um abanar de mãos.
Foi você, de nosso grupo, sempre, o mais contido, o de menos falar e mais ouvir. E é assim, em silêncio, enrustido, deixando-me a mim, em particular, com a imagem do último encontro que tivemos - sentados frente a frente no almoço de comemoração dos jubiléu de nossa turma do Colégio - a lembrar os quarenta [um pouco mais, um pouco menos] anos de saudades e desencontros que tivemos na vida.
Ficaram, amigo, as lembranças do feijão de dona Duduca, minha mãe, que tanto bem lhe queria; ficaram as recordações do travesseiro que dona Maria, sua mãe, separava para mim e que deixava morto de ciúmes nosso outro amigo que está, hoje, a recebê-lo na nova morada em que viveremos todos, não vai levar tanto tempo assim; ficaram, amigo, o metrônomo sobre o piano da sala de estar de sua casa que só o Gaguinho tocava [e como!], o Studebaker que ninguém dirigia melhor que você, as madrugadas dos dias de prova de Física, as molecagens na sala de aula.
Não fomos estudar Direito em Coimbra como tantas vezes planejamos. Os caminhos e, mais que eles, os descaminhos da vida nos levaram para outros céus, outras terras, outros mares.
Quem sabe, amigo, juntos, num dia qualquer de chuva, estendamos as capas pretas de Coimbra para que nossas irmãs portuguesas - mais suas que minhas - não sejam obrigadas a ter seus pezinhos sujos de lama?
Beijos do amigo que espera sua hora para encontrá-lo. Vai ser um carnaval.
Zum zaravá.